Há um filme de Woody Allen (Magia ao Luar, 2014). Ele está apaixonado e sabe que ela é uma vigarista, que contudo também está apaixonada por ele (e ele sabe-o). Ele está indeciso, melhor, perturbado, oprimido pela indecisão: ficar ou não ficar com ela. Há uma velha tia: senhora doce, terna, presciente. Ele conta tudo à tia, sobressaltado, confuso. A tia ouve-o, só o ouve, não fala, olha-o, acena com a cabeça, murmura hmmm de assentimento. No fim ele sai alegre e contente de casa da tia; leve, livre, e pode ir ter com ela e perdoá-la e acreditar nela; mas não porque os problemas se tivessem dissipado – os problemas continuam os mesmos –, e contudo, por ter sido ouvido, sentiu-se livre, pode descobrir um sentido e tomar uma iniciativa.
Qual a relação entre este episódio e a conferência de Dom Mauro Lepori? É que é o pôr-se em relação com alguém que me ouve e me faz perceber o sentido que me dá a libertação.
Que alguém? Que sentido? Que libertação...?
“A liberdade é uma libertação, é sermos libertados por Outro. E portanto a liberdade é um dom, o dom de Outro [...] A liberdade não é uma realidade abstracta, uma entidade autónoma. A liberdade não pode ser livre em si mesma. A liberdade joga-se num dom interpessoal. A liberdade existe se alguém me liberta agora, se alguém ma der agora”. E continua Lepori. “É um bocado como o paralítico da piscina de Betzatá. Jesus pergunta-lhe: ‘Queres ser curado?’(Jo 5,6). Que pergunta?! Imagina se não quero curar-me! Imagina se posso não querer curar-me! Porque me fazes essa pergunta? Jesus teria podido responder-lhe: ‘Eu sei que queres curar-te, mas faço-te a pergunta para que percebas que eu não te falo só da tua cura, em abstracto, mas da cura que eu quero e posso dar-te. Não te pergunto simplesmente se queres curar-te, mas se queres curar-te graças a mim, comigo, na relação comigo, que estou aqui a falar contigo. E de repente, o verdadeiro problema do paralítico deixa de ser o de chegar à piscina para ficar bom [...]. O problema dele deixa de ser uma liberdade condicionada por outro ou outros [...]. Agora tudo depende da sua liberdade, da liberdade do seu coração, a cura veio até ele e pede licença para lhe mudar a vida. No fundo o que Cristo quer curar, em todos e através de tudo, é a própria liberdade, a liberdade de se abrir ao dom de Deus que já lhe foi dado.” Esta mesma dinâmica se repetiu com Nicodemos – a quem foi revelado que o seu coração não se satisfaria só com legalismos medrosos –, com a Samaritana – a quem foi revelado que o coração dela não deseja só maridos –...
O coração do homem não se satisfaz com o mundo inteiro e por isso vale mais do que o mundo inteiro. O coração do Homem não é diferente do de Quixote de Cervantes. Mas acabará por desistir, por repelir aquilo que o constitui, por se alienar de si próprio se não encontrar a resposta à sua sede de infinito. E por isso só Aquele que fez o mundo inteiro e o coração do homem o pode satisfazer. Mas – e este é porventura o aspecto mais brilhante do que nos ensinou Mauro Lepori – essa libertação acontece não por uma injecção celestial de virtudes, mas pelo o entrar em relação com Cristo, na Igreja, nestes que Ele escolheu. Como Giussani dizia, “a igreja não está no mundo para resolver os problemas dos homens, mas para os recolocar numa situação tal em que os problemas podem ser resolvidos (Porquê a Igreja, Tenacitas, 2010)”. Essa situação é a da efectiva relação com Cristo. Só na comunidade, pela comunidade, acontece a libertação. Só na comunhão acontece a libertação.
Pedro Abreu
Inês Avelar
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