P. Mauro-Giuseppe Lepori, OCist
7 de Abril de 2018
O paradoxo cristão
Perante o tema desta edição do MeetingLisboa, senti-me um bocado desorientado, como um músico a ter de tocar ou dirigir um concerto, mas que recebe uma partitura com as páginas fora de ordem; e o músico pergunta-se: «Por onde vou agora começar este concerto? Pela página da liberdade, pela página do coração, pela página da pertença? Como compô-las para que a grande sinfonia, que é o mistério do homem, possa ser interpretada?».
Com efeito, este tema demonstra o paradoxo cristão, que consegue fazer coincidir aquilo que parece oposto ao homem, aquilo que lhe parece estar em contradição. Tudo, no cristianismo, é harmonia dos opostos, porque o cristianismo se fundamenta na coincidência impossível, impensável, inconcebível e, para muitos, inaceitável, entre Deus e o homem, entre o Criador e a criatura; em Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem; em Cristo, no qual tudo foi criado e que vem viver para dentro da criação, que vem ser “feito carne”, criado como homem, sem perder o seu ser “gerado, não criado, consubstancial ao Pai”.
São João, no Prólogo do seu Evangelho, continua a repetir-se, e a voltar a manifestar este paradoxo: “A luz brilhou nas trevas... Ele estava no mundo e por Ele o mundo veio à existência... E o Verbo se fez carne!” (Jo1,5.10.14).
Não reduzir o mistério do homem
Agora, o mistério que em Cristo não pode ser reduzido, o mistério de Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, que n’Ele continua a permanecer mistério ativo, presente, irredutível, vem a refletir-se como mistério no seu Corpo que é a Igreja e, num certo sentido, torna-se ainda mais sensível como mistério dentro da humanidade da Igreja. É um grande mistério Deus ter-se tornado homem! Mas que mistério ainda mais incrível a sua presença e ação divina na humanidade eclesial, nos pecadores que o mistério torna membros do seu Corpo divino!
O mistério de Cristo, o mistério que Cristo é, reflete-se realmente no homem, o que torna a nossa humanidade uma realidade revelada a si própria pelo paradoxo que dá consigo a encarnar. E é aqui que reencontramos o nosso tema: “Ser livre é ter o coração preso”, frase que reflete na nossa humanidade, na nossa experiência humana, quotidiana, elementar, o mistério de Cristo, que veio revelar-nos o mistério do homem.
Como lemos na Gaudium et spes: “De facto, somente no mistério do Verbo encarnado o mistério do homem encontra verdadeira luz. Por isso, Adão, o primeiro homem, era figura do segundo Adão (Rm5,14), ou seja, de Cristo Senhor. Cristo, que é o novo Adão, revelando o mistério do Pai e do seu amor, desvela também plenamente o homem ao homem e dá-lhe a conhecer a sua altíssima vocação” (Gaudium et spes, 22).
O mistério do Verbo encarnado, o Verbo encarnado como mistério irredutível, reflete-se no homem, total e ontologicamente dependente do mistério de Cristo, do qual é imagem. Isto significa que, sem a “verdadeira luz” de Cristo, sem a luz do Verbo encarnado, o homem não consegue compreender-se a si próprio, a si próprio como mistério, não consegue divisar em si o mistério e, portanto, não sabe quem é, não sabe porque é que existe, qual a sua vocação enquanto homem, não sabe a que está chamado, qual o sentido de ser homem, de viver uma vida humana, de ter um coração humano.
É por isso que só o cristianismo resolve o paradoxo da vida humana, da condição humana, do coração humano, sem censurar o paradoxo, sem ter de eliminar ou anestesiar um dos polos de tensão que o constituem, sem censurar o drama da contradição de que Cristo é sinal. Entrando no mundo humano como verdadeiro Deus e verdadeiro homem, Jesus é um sinal de contradição que resolve a contradição do humano só através da sua presença: “Ele está aqui para queda e ressurgimento de muitos em Israel e para ser sinal de contradição (...). Assim hão de se revelar os pensamentos de muitos corações» (Lc2,34-35).
A provocação essencial de Cristo
Por isso o tema deste Meetingtoca um ponto nevrálgico e vital para a humanidade contemporânea, onde quer que viva, ame, trabalhe, goze ou sofra. Porque se trata sobretudo de não censurar o coração, a sua sede de liberdade, o pedido de liberdade que o coração é.
E é precisamente isto que Jesus veio demonstrar, com toda a sua vida, a sua pregação, em todos os encontros em que expressou o significado da sua presença. É como se Cristo subentendesse em tudo uma provocação essencial: “Cuidado com o vosso coração e com o seu desejo de liberdade!”. É como se dissesse, revelasse a toda a gente: “Olha que não precisas de riquezas, poder, prazer só, sem mais; não precisas só de pão nem só da tua mulher ou do teu marido, dos teus filhos e nem sequer precisas de ser religiosamente perfeito. Aquilo que tu precisas é de ter um coração livre, verdadeiramente livre. Tu és desejo de liberdade, porque o teu coração é sede de liberdade!”.
Jesus não veio “desvendar os pensamentos de muitos corações” (cf. Lc 2,35) só para manifestar a sua clarividência e que Ele é o Senhor do coração do homem. Não veio só para desmascarar a nossa miséria interior. Para que nos serviria isso? Jesus veio para nos revelar a profunda beleza do coração humano, a beleza que nem sequer o pecado pode destruir ou apagar: a beleza do nosso coração feito para o infinito, cheio de anseio por aquilo que o mundo não consegue dar, por aquilo que o mundo não pode ser. Um só coração humano vale mais do que o mundo inteiro, porque deseja infinitamente mais do que o mundo inteiro.
A cultura moderna não renegou tanto Cristo como mestre da verdade, ou mestre de valores ou direitos humanos fundamentais. A cultura moderna renegou Cristo que revela ao homem a natureza do seu coração, Cristo que contradiz a negação que o coração humano faz de si próprio, do seu desejo, da sua alegria, da sua vocação para a liberdade e, portanto, da sua capacidade para amar.
Renegou-se, censurou-se e desconheceu-se o Jesus que revela a Nicodemos que o coração dele não deseja somente um legalismo medroso; que revela à Samaritana que o coração dela não deseja só maridos; Cristo que lembra ao paralítico, ao cego de nascença, ao leproso, que o coração deles não deseja só a cura.
A grande separação
Mas no próprio ato de revelar a verdadeira exigência do coração, no próprio ato de suscitar, de ressuscitar no encontro com Ele o desejo profundo do coração, Jesus revela uma realidade ainda mais contraditória, mais dramática: a realidade que de facto leva o homem a censurar o seu próprio coração. Com efeito, revela que o desejo do coração, a sede de liberdade, de amor, de beleza, de verdade que o coração é, não é o homem sozinho que pode satisfazê-la. O homem é incapaz de satisfazer a sede do seu próprio coração. Empreende tudo, vive tudo, movido por ela, mas acaba sempre como um Don Quixote, que tinha partido para uma campanha impossível, irreal, absurda. Ou seja, o homem faz experiência de ser instigado pelo seu próprio coração a realizar uma missão impossível, que o homem mais tarde ou mais cedo define como absurda, e, portanto, acaba a definir absurdo ou inexistente o instigador desta missão, o próprio coração. Com outras palavras: o homem enviado na aventura da vida, como um cavaleiro solitário, a combater para conquistar o que o coração exige, dá consigo contrariado por um coração que, cada vez que o homem lhe traz um despojo de guerra, se mostra desiludido, inexoravelmente insatisfeito. “Não é isto que desejo, não é por isto que grito, não é por esta liberdade que anseio! Volta à luta ou então não voltes mais!”.
E de facto, mais tarde ou mais cedo, é como se o homem deixasse de voltar ao seu coração exigente, ao seu coração nunca contente com nada, como uma criança caprichosa ou um velho rabugento. Quanto muito, regressa a casa só para lhe atirar os despojos de guerra que ganhou mais facilmente, ou a primeira presa de caça que apanhou. Atira-lhos e já não se detém a ouvir as reações do coração, os seus juízos, a sua insatisfação: “Contenta-te com isto e cala-te!”.
E ao fim de um tempo, o coração humano cala-se, sofre em silêncio, frustrado, vazio, infeliz. E cria-se a grande separação, o grande abismo na experiência humana, o grande divórcio entre o coração e a vida, entre as exigências do coração e as conquistas da vida, entre aquilo que o coração deseja e aquilo com que a vida se considera satisfeita, realizada. O coração humano é como uma mulher que deseja um grande amor e que não recebe do marido senão dinheiro, roupa, jóias, férias e prazer sexual, mas nunca um instante de atenção às suas exigências afetivas profundas.
Vinde a mim
Pois bem: é deste coração desiludido que Cristo se aproxima, é para este coração que o Nazareno se inclina. Precisamente como naquele dia em que, apesar do cansaço da viagem, com fome e sede, se inclinou para as exigências verdadeiras do coração da mulher da Samaria, junto do poço de Jacob (cf. Jo4,6ss). Estava sozinho, não tanto por os discípulos terem ido fazer compras à cidade, mas porque só Ele pode e sabe inclinar-se com ternura para o coração humano desiludido com a própria vida, dividido pela própria vida.
E o que diz Cristo a este coração?
No fundo, diz uma verdade muito simples, que qualquer criança instintivamente perceberia. Diz-lhe: “Sozinho, não consegues, mas se deixares que te ajude, se aceitares a minha ajuda, o meu amor, te será dado aquilo que desejas. Eu vim para juntar a tua sede profunda de liberdade à realidade da tua vida. E como as junto? Dando-te um amor, transformando a tua liberdade em acolhimento de um amor que pode amar toda a tua vida. Vim para libertar a tua liberdade com um amor impossível, divino, o meuamor, para que já nada na tua vida e na vida de todas as pessoas possa contrariar a tua sede infinita. Já não será a vida a ter de responder à tua sede de infinito, mas serás tu, comigo, em Mim, através de Mim, a responderes à tua vida, a todos e a tudo da tua vida, com a liberdade infinita de um amor gratuito, sem exigir retribuição!”.
Com palavras do Evangelho: “Vinde a mim, todos os que andais cansados e oprimidos e Eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração e encontrareis descanso para as vossas almas. Pois o meu jugo é suave, e a minha carga é leve.” (Mt11,28-30).
Um coração cansado e oprimido do homem, cansado de ansiar por uma liberdade que nunca consegue, que é sempre mortificada e oprimida pela concorrência da liberdade dos outros, cansado e oprimido também e sobretudo por si próprio, pela própria pretensão sobre si, é procurado por Cristo, é alcançado por Alguém que se debruça sobre ele, desce até ele nas prisões mais profundas do ser humano: o pecado e a morte. Cristo penetra nas profundezas extremas do coração perdido, prisioneiro de si, de todos e de tudo, prisioneiro em tudo aquilo que o homem vive, prisioneiro no viver a alegria e a dor, o trabalho e o descanso, prisioneiro no viver o amor, a afetividade, prisioneiro no viver a religiosidade; resumindo: prisioneiro no viver toda a realidade, mas também no viver os seus sonhos, as suas miragens, tudo. Quando Jesus Cristo desce até ao fundo dos infernos, no mistério de Sábado Santo, e dá a mão a Adão, é o coração humano incapaz de se libertar, de ser livre, de viver com liberdade, que torna a levantar das profundezas da sua miséria abissal.
Queres ser livre?
Mas percebem o que acontece quando Cristo encontra o coração cansado e oprimido do homem, o coração prisioneiro do homem? Percebem o que faz para o libertar, para satisfazer finalmente a sua sede de liberdade?
“Vinde a mim, todos vós que andais cansados e oprimidos e Eu vos aliviarei”. A irrupção de Deus na liberdade prisioneira do homem é de uma delicadeza extrema. Porque no próprio ato de Jesus perguntar ao coração se quer ser libertado por Ele, no próprio ato deste convite, na provocação deste convite cheio de ternura, diria quase de timidez, no próprio ato de fazer esta pergunta ao homem – “Queres ser libertado da tua opressão? Queres ser libertado por mim? Queres ser livre comigo?” – é precisamente nisto que a liberdade é oferecida ao coração, que é proposta a libertação. Se disser que sim, se aceitar o convite, imediatamente é dado ao coração recuperar a sua liberdade.
Jesus não irrompe pela vida a gritar: Eu liberto-te! Eu sou o libertador! Mas apresenta-se à soleira do coração do homem, bate à sua porta, a sussurrar o convite à sua libertação com mansidão e humildade de coração.
E enquanto o coração Lhe responder: “Sim, liberta-me! Sim, quero ser livre, gostaria de ser libertado por ti! Sim, venho a ti para deixar de me sentir oprimido, para ser verdadeiramente livre!”, pois bem, é precisamente nesta resposta, precisamente neste sim, que anseia a libertação, que o coração vive imediatamente a experiência da liberdade, da verdadeira liberdade. É respondendo a Cristo, ao convite do Eterno, que o coração dá consigo, de novo, a escolher uma liberdade infinita, como a Virgem Maria com o “sim” da Anunciação.
Porque já esta resposta, este sim, este desejo de liberdade confiado e entregue a Cristo, posto nas suas mãos, confiado ao Coração de Cristo, já isto é a liberdade que o coração deseja, a liberdade impossível à qual o coração aspira, a liberdade de dizer ‘sim’ ao infinito de que o coração tem sede.
E imediatamente, imediatamente!, é dado ao coração do homem perceber a liberdade, conhecer o que é a liberdade. A liberdade é uma libertação, é sermos libertados por Outro. E, portanto, a liberdade é um dom, o dom de Outro, o dom do único que nos pode libertar, do único que nos pode dar e voltar a dar a liberdade, a verdadeira liberdade. A liberdade não é uma realidade abstrata, uma entidade autónoma. A liberdade não pode ser livre em si mesma. A liberdade joga-se num dom interpessoal. A liberdade existe se alguém me liberta agora, se alguém ma der agora.
O Autor da liberdade, o Dador da liberdade, Aquele que deu ao homem a liberdade desde a origem, recria em nós a liberdade perguntando ao coração prisioneiro se a deseja vinda d’Ele, se quer receber d’Ele este dom, agora. Nada é mais livre do que a aceitação ou a recusa de um dom que já nos foi dado. Nada é mais livre do que o sim ou o não ao convite de Quem já veio até nós.
É um bocado como o paralítico da piscina de Betzatá. Jesus pergunta-lhe: “Queres ser curado?” (Jo5,6). “Que pergunta!? Imagina se não quero curar-me! Imagina se posso não querer curar-me! Porque me fazes essa pergunta?”.
Jesus teria podido responder-lhe: “Eu sei que queres curar-te, mas faço-te a pergunta para que percebas que eu não te falo só da tua cura, em abstrato, mas da cura que eu quero e posso dar-te. Não te pergunto simplesmente se queres curar-te, mas se queres curar-te graças a mim, comigo, na relação comigo, que estou aqui a falar contigo”. E de repente, o verdadeiro problema para o paralítico deixa de ser o de chegar à piscina para ficar bom, ou o de ter alguém para o levar lá quando a água se agita. O problema para ele deixa de ser uma liberdade condicionada por outro ou outros, deixa de ser a liberdade dos outros. Agora tudo depende da sua liberdade, da liberdade do seu coração, porque a salvação, a cura, veio até ele e pede licença para lhe mudar a vida.
No fundo, o que Cristo quer curar, em todos e através de tudo, é a liberdade do homem, a liberdade de se abrir ao dom de Deus que já lhe foi dado. A graça do coração livre abre a todas as graças. Quem aceitar ser livre pela libertação operada por Jesus, torna-se livre para tudo, até para o impossível, porque quem deixa que Deus lhe dê a liberdade acolhe tudo, permite que Deus lhe dê tudo, até a força e a fé para morrer por Ele, com Ele e como Ele. “Se o Filho vos libertar, sereis verdadeiramente livres” (Jo8,36).
Um coração pobre
Sim, a liberdade quer dizer ter o coração preso, agarrado por uma presença que nos liberta agora, aqui.
Quando Jesus disse: “Vinde a mim, todos os que andais cansados e oprimidos e Eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração e encontrareis descanso para as vossas almas. Pois o meu jugo é suave, e a minha carga é leve”, não devemos pensar no jugo sobretudo como um peso que oprime, mas como um instrumento, e, portanto, para nós o símbolo de uma obra comum.
A etimologia de “jugo” leva ao verbo “conjugar”. É como se Jesus nos dissesse: “Trabalhem comigo, colaborem comigo, não façam as vossas coisas sozinhos, mas deixem-se ajudar por mim, que opero convosco e para vós!”.
É por isto que Cristo diz que o seu jugo é mais doce e leve do que o trabalho que pretendemos fazer sozinhos. Quando observo, na Etiópia, os bois emparelhados a ararem a terra, a cena faz-me sempre meditar: primeiro, porque penso que são cenas parecidas com as que Jesus via, mas depois pela força simbólica da cena em si. O jugo, idealmente, forma uma cruz com o arado, que naquelas paragens é ainda de madeira. O jugo arrasta o arado e permite-lhe trabalhar a terra. E o todo é levado e puxado pela mansidão silenciosa dos bois, pela sua submissão dócil e plácida. É impressionante a mansidão dos bois, se comparada com a força da sua corpulência física!
Jesus deixou-se inspirar por esta imagem dos bois para nos falar do que há de mais sublime, daquilo que o homem tem recebido de Deus e à imagem d’Ele: a liberdade, a liberdade em ação e a liberdade libertada, redimida pela cruz de Cristo, pelo jugo de Cristo que é a sua obediência dócil ao Pai, o seu operar em comunhão com o Pai no amor do Espírito Santo.
Jesus, ao fazer-se homem, foi o primeiro a aceitar não viver sozinho a sua liberdade divina. Mas, já na Trindade, nenhuma Pessoa divina quer viver uma liberdade isolada, uma liberdade autónoma. No próprio Deus, a liberdade quer ser somente liberdade de comunhão, e, portanto, uma liberdade obediente. No próprio Deus, cada Pessoa é livre na pertença recíproca dos Corações. Ter o coração preso pelo outro com liberdade é a definição trinitária, isto é, cristã, do verdadeiro amor.
Mas é preciso um coração manso e humilde, ou seja, um coração pobre, para aceitar que a minha liberdade seja o fruto de uma libertação, que eu não consigo ser livre sozinho, sem Outro que me liberta verdadeiramente, sem a liberdade de Deus, a liberdade paradoxalmente obediente de Deus e em Deus. É por isso que Cristo diz que, para escolher a liberdade do coração, precisamos de aprender com Ele, manso e humilde de coração. O nosso coração precisa de aprender com o Coração de Cristo a verdadeira liberdade, a liberdade dos humildes e dos mansos, que não resistem à pertença Àquele que nos faz, que nos faz livres. Que não resistem a ser presos pela Liberdade divina que nos faz, que nos ama, que nos liberta. O coração humilde reconhece que a sua liberdade é o dom de Outro, é criação de Outro, e que a liberdade humana não vive, não é ela própria, sem comunhão com Aquele que a cria.
Libertados pelo prisioneiro
Há certas pessoas que no Evangelho fizeram uma experiência paradoxal de libertação; paradoxal porque operada por Aquele que deviam fazer prisioneiro, por Aquele a quem tinham de tirar a liberdade. É a experiência, descrita no capítulo 7 do Evangelho de São João, dos guardas que os chefes dos Judeus tinham mandado prender Jesus. Estes guardas vão em missão, uma das muitas, como quando os mandavam prender um ladrão, um assassino ou qualquer pessoa que infringisse a lei. Aproximam-se de Jesus, que está a falar, rodeado pela multidão. Hesitam um bocado, não ousam intervir logo, de chofre, mas param para avaliar a situação, para ver qual o melhor momento para o prenderem sem criar confusão. Decerto discutem rapidamente entre si, em voz baixa, tentando não saltar à vista. Entretanto, Jesus fala. Quem sabe o que estava a dizer? Talvez uma parábola, ou respondia às perguntas de quem estava mais perto d’Ele. Ou talvez falasse da bondade do Pai, ou da sua própria missão. O que é certo é que Jesus estava a evangelizar, explicava a verdade que veio trazer ao mundo, explicava-se a si próprio, a verdade e beleza do Verbo de Deus. E eis que estes soldados, que provavelmente nunca O tinham visto e ouvido de perto, que com certeza nunca se tinham interessado pelo Nazareno, que nem sequer eram particularmente religiosos, eis que alguma coisa acontece no coração deles; sentem-se invadidos por alguma coisa, tomados por um sentimento misterioso, que nunca tinham sentido antes. Não sei quantos deviam ser, estes guardas dos chefes dos Judeus, mas de certeza que eram uns tantos, porque os Judeus sabiam que, para prender Jesus no meio da multidão, era preciso um pequeno contingente de homens fortes e decididos.
E eis que todos eles, sem excepção, a ouvir Jesus, fazem a mesma experiência interior. Sem falarem uns com os outros, sem combinarem, dão com eles, como um só homem, a voltar para os chefes de mãos vazias, sem sequer tentar prender Jesus, aliás: esquecendo-se de que deviam prender Jesus.
João escreve: «Depois os guardas voltaram aos Sumos Sacerdotes e aos fariseus, que lhes perguntaram: “Porque é que não o trouxestes?”. Os guardas responderam: “Nunca ninguém falou assim!”» (Jo7,45-46).
Não dizem: Não foi possível, era demasiado arriscado, ainda éramos capazes de provocar um motim... Não, não; pensam em todo na sua missão, na segurança, na política. Repetem, como apatetados, sem prestarem atenção aos chefes: “Nunca ninguém falou assim!”. Dizem-no aos chefes, mas também o dirão às suas mulheres, aos seus amigos, ao vendedor de peixe, a todos, indiscriminadamente.
O que aconteceu? Aconteceu que o fascínio do Verbo de Deus, o fascínio de Cristo, novo porque misterioso, atingiu a humanidade destes guardas, homens certamente pouco preparados para dissertarem sobre teologia, direito, filosofia. Eram verdadeiramente, como dizem os fariseus logo a seguir, “gente que não conhece a Lei”, gente “maldita” (Jo7,49). Mas o Verbo de Deus, a palavra de Cristo, atinge o coração do homem e torna-o capaz de tomar uma posição que obedeça mais ao espanto do coração do que à obrigação da Lei e das leis. A polícia, por si, não tem o direito de sondar os sentimentos do coração, de sondar as intuições profundas: tem simplesmente de fazer o seu dever, o dever definido pela autoridade superior.
E no entanto, o espanto de um coração simples, de um coração simplesmente humano, no bem e no mal, diante de Cristo que fala à liberdade, que desperta a liberdade com o fascínio da verdade, com a beleza da verdade, com a bondade da verdade que exprime, o espanto de um coração humano não consegue evitar deixar-se determinar mais por esta experiência do que por tudo o resto. Não há dever mais capaz de determinar o coração do fascínio por Cristo e pelas suas palavras, mais eficaz do fascínio do Mistério que vai ter com o homem.
A autoridade da experiência do coração
Este episódio demonstra que a única autoridade que respeita verdadeiramente a liberdade do homem é a da experiência, de algo que acontece e que o coração chega a experimentar. E as palavras de Jesus, a presença de Jesus a falar, a olhar, a sorrir ou sério, é pura experiência do coração, é experiência direta do coração, e, portanto, suprema autoridade que move a liberdade, que atrai e prende a liberdade, sem a anular, aliás: exaltando-a como nenhuma outra experiência.
Diante das palavras de Cristo, a liberdade submete-se livremente, segue livremente, inclina-se livremente e é nisto que a liberdade se afirma, é, vive, é livre, é ela própria.
Imaginem! Estes homens, que eram prisioneiros da ordem de anular a liberdade de Cristo, voltam para os fariseus como que transtornados. A liberdade de Cristo libertou-os, libertou-os da obrigação de terem de anular a liberdade de Cristo. Porque, ao ouvir Jesus, confrontados com a autoridade de Jesus, única, inédita, original – “Nunca nenhum homem falou assim!” – estes homens perceberam em Cristo a origem da sua liberdade, de uma liberdade nunca imaginada: a liberdade de serem movidos, determinados, pela experiência de verdade e de beleza do seu coração no encontro com Jesus.
No fundo estes homens, com certeza rudes, fazem uma experiência afetiva de Jesus Cristo. Ficam fascinados, como a experiência de um enamoramento. Já não são livres de negá-lo, de irem contra este sentimento. Não conseguem ir contra Jesus, porque agora seria como ir contra o coração deles. Não conseguem prender Jesus, porque seria como prender a liberdade do coração deles. São homens presos pela liberdade de Cristo, prisioneiros da liberdade de Cristo, porque agora a liberdade deles só é garantida por Ele, deriva d’Ele, jorra da Sua liberdade, como o rio da nascente.
Mas imaginam a liberdade nova e inaudita expressa por estes guardas? Depois de terem obedecido durante anos, sem discutir, a todas as ordens, até às mais cruéis e mesquinhas, dos seus chefes, à autoridade sacrossanta dos sacerdotes do Templo ou dos fariseus, agora voltam desta missão que deveria anular o acontecimento de Cristo com a liberdade descarada de dizer aos sacerdotes: “Nunca ninguém – e, portanto, nem sequer vós, sacerdotes, escribas e fariseus – nunca ninguém falou como Ele fala, como Ele nos falou, como Ele falou ao nosso coração!”.
O autoritarismo procura sempre impor-se teoricamente, não transmite experiência, não deixa à liberdade o espaço da experiência. O autoritarismo pretende que a liberdade se afaste sem se exprimir, que se cale, que se anule. Em contrapartida, a verdadeira autoridade transmite à liberdade a proposta de uma experiência.
A verdadeira autoridade é tradição, isto é, transmissão de uma experiência. Não só transmissão de leis e dogmas, mas transmissão de uma experiência possível de verdade, de justiça, de beleza, que desperta, alimenta e afirma a liberdade do coração. Toda a cultura verdadeira transmite uma experiência; não só ideias e ideologias, mas experiência do valor que une um povo na liberdade de pertencer ao Infinito.
Um coração mais forte do César
A liberdade de Cristo é a garantia incontornável da liberdade do homem, porque nada consegue anular a liberdade de Cristo, nem sequer a morte. Quando outros guardas prenderem mesmo Jesus, quando Jesus foi amarrado, preso, processado, maltratado, troçado, humilhado, quando a sua liberdade for negada e espezinhada pelos homens ao ponto de o privar da vida, ainda antes de revelar a sua total liberdade da morte com a ressurreição, nessa mesma altura, outro guarda, um centurião romano, que cumpriu até ao fim a missão de suprimir a liberdade e a vida de Jesus, irá gritar uma confissão inaudita sobre o acontecimento de Cristo: «O centurião, que estava em frente dele, ao vê-lo expirar daquela maneira, disse: “Verdadeiramente, este homem era Filho de Deus!”» (Mc15,39).
Também ele, ao ver Jesus morrer daquela maneira, ao ver Jesus dar a vida pelo mundo, ao ver a expressão suprema da liberdade de Cristo – porque a morte de Jesus foi um ato totalmente livre – também ele, ao fazer experiência disto, não conseguiu conter o grito do seu coração, agarrado ao fascínio do Mistério pascal, o grito da confissão da divindade daquele Homem. E, também ele exprimiu assim uma liberdade inaudita, que desafiava e vencia não só os sacerdotes e os fariseus, mas até o César, o seu imperador, que se pretendia divino.
O centurião foi o primeiro a experimentar que a liberdade suprema do coração é a fé em Cristo, Filho de Deus, morto e ressuscitado; a fé no amor infinito que salva e liberta o mundo inteiro.
Preso pela fé na caridade de Cristo, vista e experimentada no paradoxo da Cruz, o centurião foi invadido pela liberdade com a qual até um coração humano, pequeno e mísero, quando é preso, tomado por Cristo, pelo amor de Cristo, se torna capaz de vencer e dominar todos os donos do mundo.
O segredo da liberdade: pertencer
Por esta razão, em toda a história da Igreja, aqueles que realmente educaram à liberdade o coração foram aqueles que ensinaram a pertencer, a pertencer a Cristo na companhia do Seu Corpo, a pertencer exatamente no desejo de crescer na liberdade de coração. Porque a liberdade do coração significa também, e provavelmente em primeiro lugar, ser livres de si próprios, do próprio dobrar-se em si próprios.
Neste sentido, São Bento insistiu na obediência a uma comunidade guiada por um abade, precisamente como via para a liberdade do coração. No início da sua Regra, a Regra monástica que através dos mosteiros deu raízes vivas, cristãs e humanas à civilização europeia, São Bento diz-se consciente que o caminho de pertença não é um caminho fácil, porque a liberdade, a partir do pecado original, tem sempre como que um movimento instintivo de rebeldia para com a pertença; acredita que pode ser livre só se for determinada por si própria, como se a liberdade fosse em nós um fim em si própria, como se a finalidade da liberdade fosse a própria liberdade. Então São Bento pede a quem entra no mosteiro de dar crédito à experiencia que ele próprio fez, à experiencia de libertação feita em primeiro lugar por São Bento que educou a sua liberdade a pertencer. Por qual razão este caminho é uma libertação? Porque só desta maneira a liberdade aprende e faz experiencia do seu verdadeiro fim, da razão pela qual nos foi doada por Deus. Este fim é o amor, este fim é a caridade. Somente a caridade realiza a liberdade, dá-lhe plenitude, plenitude de liberdade.
Escreve São Bento no Prólogo da Regra: “Na medida em que entrarmos no caminho da vida monástica e da fé, então correremos na via dos mandamentos do Senhor com o coração dilatado pela doçura inefável do amor. Desta maneira, sem afastarmos do Seu ensino e vivendo no mosteiro saldos na doutrina até à morte, participaremos através da paciência à Paixão de Cristo, para chegarmos a tomar parte com Ele no Seu Reino” (RB, Prol. 49-50).
São Bento, porém, não quere que os seus monges fiquem ao meio deste caminho de libertação. A obediência, a pertença não são fins em si próprios, mas devem conduzir à plenitude de um amor que prende o coração em quanto amor; um amor no qual Cristo, Cristo em tudo e em todos, seja ao mesmo tempo o manancial e o fim da liberdade. A liberdade do homem, na verdade, é como um rio que corre entre o manancial e o mar do amor de Deus.
Sobre este tema, existe um episódio significativo e paradigmático na vida de São Bento, contada por Gregório Magno nos Diálogos. Um eremita do monte Marsico, chamado Martinho, «em quanto chegou àquele monte (…) prendeu o seu pé a uma corrente de ferro, fixando a outra extremidade à rocha, de modo que não podia afastar-se se não quanto a corrente o permitisse. Quando São Bento soube disso, mandou-lhe dizer, através de um discípulo: “Se és servo de Deus, a manter-te preso não seja uma corrente de ferro, mas a corrente de Cristo”. Ouvidas estas palavras, Martinho desfez-se imediatamente da corrente de ferro, mas, embora estivesse livre de se mover, não se afastou daquele lugar mais do que antes, quando estava preso, ficando sem corrente, no mesmo angusto espaço de antes, como quando estava preso…» (Diálogos, III,16).
Esta é a liberdade dos filhos de Deus, uma liberdade libertada, uma liberdade doada, uma liberdade pascoal, agarrada à Paixão de Cristo e por paixão a Ele, que na sua liberdade totalmente amante fez-se escravo para dar a vida por nós.
Comentários