O cursor da vocação do profeta
Não se pode deixar de ler e de ter sempre diante dos olhos este pequeno cursor que desliza e permanece sempre atual ao longo da vida de Jeremias:
«1,4E veio a Palavra do Senhor sobre mim, dizendo: 5Antes de Eu te haver formado no ventre, Eu conhecia-te, e antes de saíres do útero, Eu te consagrei (hiqdashtîka), profeta para as nações te dei. 6E eu disse: “Ah, Senhor Deus, eis que eu não sei falar, pois sou apenas um rapaz (na‛ar)”. 7E disse-me Deus: Não digas: “Sou apenas um rapaz (na‛ar)”, porque para tudo o que Eu te enviar, tu irás, e tudo o que eu te ordenar, falarás. 8Não temas diante deles, porque Eu estou contigo para te salvar, oráculo do Senhor. 9E estendeu o Senhor a sua mão, e pô-la sobre a minha boca, e disse-me o Senhor: “Eis que dou as minhas Palavras na tua boca. 10Vê! Eu te constituo hoje sobre as nações e sobre os reinos, para arrancar e para destruir, para exterminar e para demolir, para construir e para plantar”. 11E veio a Palavra do Senhor sobre mim, dizendo: “O que vês, Jeremias?” E eu disse: “Vejo um ramo de amendoeira (shaqed)”. 12E disse-me o Senhor: “Viste bem, [Jeremias], porque Eu estou vigilante (shôqed) sobre a minha Palavra, para a fazer acontecer (‘asah)”» (Jr 1,4-12).
Acompanhemos mais de perto alguns dos seus principais andamentos:
Na belíssima e finíssima, imensa cena da vocação de Jeremias, tecida em forma dialogal, que é a maneira de ser da inteira Escritura, logo aí um desafio para nós, Deus confia a Jeremias uma missão difícil: «Eis que ponho as minhas palavras na tua boca. Vê! Eis que te constituo hoje, sobre as nações e sobre os reinos, para arrancar e para destruir, para exterminar e para demolir, para construir e para plantar» (Jr 1,9-10). Os verbos falam por si. Quatro verbos negativos, os primeiros. Apenas dois verbos positivos, os últimos. À primeira vista, a missão de Jeremias apresenta-se ingrata, espinhosa, arrasadora, quase catastrófica. Primeiro destruir, e muito; só depois construir, um bocadinho. Juntos ou em retalho, estes verbos emergem no Livro de Jeremias por 85 vezes, quase sempre tendo Deus por sujeito[1].
O grande profeta vai atravessar a época mais negra da história do seu país. Assiste, em 609 a.C., à morte inesperada e trágica de Josias, rei justo e bom, em quem estavam depositadas tantas esperanças (Jr 22,15-16)! Assiste, entre 609 e 597, à ação prepotente e insolente do tirano rei Joyaquim, que esbulha o povo de Judá (Jr 22,13 e 17) e desrespeita a Palavra de Deus, queimando cinicamente na braseira em que se aquecia (dezembro de 604 ou 601)[2] o rolo ditado por Jeremias, escrito por Baruc e lido ao rei por Judi (Jr 36,23). Assiste ainda às duas entradas devastadoras do babilónio Nabucodonosor em Jerusalém, em março de 597 e julho-agosto de 586. Esta última, 586, para pôr fim à nação de Judá, arrasar a sua capital, Jerusalém, incendiar o Templo, levar muitos nobres e artesãos, muito povo e o rei Sedecias para o Exílio na Babilónia. O procedimento de Nabucodonosor com o rei Sedecias foi particularmente cínico: assassinou os seus filhos diante dos seus olhos, e depois vazou-lhe os olhos, e despachou-o cego e acorrentado para o Exílio. Era o fim de um país e o fim de uma religião: ainda era credível e rentável o culto a um Deus que tinha aparentemente abandonado o justo e os seus fiéis, e deixado destruir o seu próprio Templo, a sua Casa? Era o fim de um mundo[3] o que se avistava agora de Jerusalém! Para cúmulo, aproveitando as debilidades de Judá, os Edomitas atacaram pelo Sul, apoderando-se de muitas terras de Judá, deixando o seu território reduzido a 20.000 pobres e a uma faixa de terra de 50 km na sua extensão norte-sul: desde Betel até Bet-Sur, um pouco a norte do Hebron, cidade que vai ficar fora do território de Judá durante quatro séculos, até 163 a.C.[4].
Nestas condições desgraçadas, não admira que, desde 609 a.C., Jeremias destile também tristeza, dor, queixumes e amarguras, confessando-se claramente um homem de coração dorido (Jr 4,19; 8,18). O que admira, e é nisso que o devemos seguir, é que ele não fique com os olhos e a alma toldados e atolados na lama e no lodo da cisterna de Melquias (Jr 38), na miséria, na ruína e na morte, num mundo sem Deus, mas tenha aprendido a ver o mundo, Deus e a religião de outra maneira. Sem álibis. Quero dizer: já não vale invocar razões como: «Ofereci sacrifícios, rezei no teu Templo» (cf. Is 29,13). Ou «comemos e bebemos contigo; tu ensinaste em nossas praças!» (Lc 13,26). Nasce outra justiça; um amor maior desponta. Sim, o justo pode morrer injustamente sem que Deus o abandone![5]. Jeremias é um pioneiro, e descobre, no meio da dor da sua vida, aquilo que Judá vai descobrir no Exílio: o verdadeiro rosto de Deus, irresistível e apaixonado companheiro (Jr 20,7.11-13), e confessa, vencido e comovido: «Sempre que aparecem as tuas palavras, eu devoro-as. A tua palavra é, para mim, exultação e a alegria do meu coração» (Jr 15,16). E com mais afinco ainda: «Tu me seduziste, Senhor, e eu deixei-me seduzir; Tu foste mais forte» (Jr 20,7). E continua: «A tua Palavra ardia no meu coração como um fogo devorador encerrado dentro dos meus ossos» (Jr 20,9). Já Moisés tinha descoberto aquela chama viva, que ardia e não queimava, mas chamava (Ex 3,2-4). Elias encontrou essa Palavra nova na «voz de um fino silêncio» (1 Rs 19,12), escrita fina de Deus, com ponta de diamante, no coração do homem (Jr 31,33; cf. 17,1). E o autor da Carta aos Hebreus compara esse «fino dizer» ou «escrever» a um bisturi de dois gumes, que rasga o âmago do homem e lhe deixa soltas as pregas do coração (Hb 4,12).
De facto, depois de lhe ter confiado aquela missão, aparentemente desgraçada, assente naqueles primeiros quatro verbos negativos (só os dois últimos são positivos) (Jr 1,10), Deus ousa perguntar a Jeremias: «O que vês, Jeremias?», ao que Jeremias responde: «Vejo um ramo de amendoeira!» (Jr 1,11). E Deus manifesta a sua aprovação a este modo de ver de Jeremias, dizendo: «Viste bem, Jeremias, viste bem!» (Jr 1,12). «Bem» diz-se em hebraico thôb. Mas thôb significa também «belo» e «bom». Jeremias vê, portanto, «bem», «belo» e «bom», como o Deus Criador (Gn 1,31)!
A amendoeira é uma das poucas árvores que floresce em pleno inverno. Ao responder: «Vejo um ramo de amendoeira», Jeremias já ergueu os olhos da invernia e da tempestade e do lodo e da lama e da catástrofe e do sangue e da morte que tinha pela frente, e já os fixou lá longe, ou aqui tão perto, na frágil-forte-vigilante flor da esperança que a amendoeira representa. É de presumir que, se Jeremias tivesse respondido: «Vejo a tempestade, a ruína, o sangue, a morte, a crise», que era o que verdadeiramente tinha diante dos seus olhos, em vez de «Viste bem, Jeremias, viste bem!», Deus tê-lo-ia reprovado, dizendo: «Viste mal, Jeremias, viste mal!».
Numa página sublime do Livro dos Números (Nm 17,17-26), Deus ordena a Moisés que recolha as varas de comando dos chefes das doze tribos de Israel, para, de entre eles, escolher um que exerça o sacerdócio em Israel. Em cada vara foi escrito o nome da respetiva tribo. Por ordem de Deus, o nome de Levi foi substituído pelo de Aarão. As doze varas foram colocadas, ao entardecer, na presença de Deus, na Tenda do Encontro. Na manhã seguinte, todos puderam contemplar que da vara de Aarão tinham desabrochado folhas verdes, flores em botão, flores abertas e frutos maduros (Nm 17,23)[6]. Dos frutos é dito o nome: amêndoas! Vara de amendoeira, portanto! Vara de amendoeira em flor e fruto que, por ordem de Deus, ficará para sempre na sua presença, diante do Propiciatório (cf. Hb 9,4), entre Deus e o povo, para impedir que o pecado do povo chegue a Deus, e para facilitar que o perdão de Deus chegue ao povo. Já ninguém estranhará agora que o candelabro (menôrah) que, de noite e de dia, ardia na presença de Deus, estivesse ornamentado com flores de amendoeira (Ex 25,31-35; 37,20-22). E também já ninguém estranhará que a tradição judaica tardia refira que a vara do Messias havia de ser de amendoeira.
Aí estão as coordenadas exatas do lugar do sacerdote e do bispo: entre Deus e o povo. Mais concretamente: pertinho de Deus, mas de um Deus que faz carícias ao seu povo, um Deus que ama e que perdoa; pertinho do povo, o suficiente para lhe entregar esta carícia de Deus.
«Tu me seduziste, Senhor, e eu deixei-me seduzir; Tu foste mais forte» (Jr 20,7). «O Senhor é um guerreiro», diz o cântico de Moisés na sua versão hebraica (Ex 15,3)[7]. Jeremias também o é. Tem de o ser. Que outro modo há de lidar com Deus, ou com o amor? Não é o amor verdadeiro, na lição inexcedível do Livro do Cântico dos Cânticos, «terrível como um exército em ordem de batalha»? (Ct 6,4), o que significa envolver-se num combate que implica «perigo de morte», não fosse o amor forte como a morte (Ct 8,6)[8]. Que o digam também Moisés, Isaías, Jeremias, Paulo de Tarso, Agostinho de Tagaste, Francisco de Xavier. Todos travam lutas intensas com Deus. Todos saem derrotados, mas não frustrados; antes, apaziguados e tranquilos. Eu também. Confesso que já perdi várias lutas com Deus. Luto com Ele, e tenho perdido sempre, e ainda bem. Já são muitos a zero. Ando nisto desde os 10 anos. E em cada dia que passa, é mais uma vitória d’Ele. Assumo publicamente a derrota. Mas compreendo cada vez melhor que a verdadeira vocação do homem é lutar com Deus mil vezes por amor, e mil vezes sair derrotado por amor.
Sim, vale a pena fazer uma viagem a Anatôt, atual Tell ʽAnata, seis quilómetros a nordeste de Jerusalém, terra natal de Jeremias, e contemplar aquelas amendoeiras floridas que continuam a alumiar os seus olhos ainda em plena invernia (fins de janeiro, princípios de fevereiro)[9]. É desde esta invernia que Jeremias vê já, não de forma sucessiva, mas em sobreposição, a primavera! Sim, Jeremias é um dos maiores cantores da esperança. Não a vai buscar, porém, a vãs promessas político-militares, sociais, económicas ou religiosas – «os profetas e os sacerdotes fazem a mentira (ՙoseh shaqer) e curam o meu povo superficialmente (ՙal-neqallah)» ( Jr 6,13-14; cf. 8,10-11)[10] –, mas arranca-a da tormenta que o habita, e partilha-a apenas com aqueles que, como ele, experimentam a amargura do sofrimento, e «comem o pão das lágrimas» (Sl 42,4; 80,6): os pobres e os abandonados, os deserdados e os famintos, os deportados, os que morrem no deserto e velam nos seus túmulos[11], sulcos semeados de lágrimas e de flores, ao mesmo tempo côncavos e convexos, feitos de terra e de céu, e que um dia darão o seu fruto!
É sabido que as grandes páginas bíblicas e o movimento substancial que atravessa a Bíblia não resultam de pacientes reflexões sistemáticas, por via teorética, mas da vivência e leitura dos acontecimentos difíceis da vida, por via traumática. Assim o pensamento bíblico e hebraico orienta-se, não para a conceção do conceito, como faz o pensamento grego, mas para a busca da salvação[12]. O que tem em mente é «como ser salvo», com quem se pode contar em tempos de angústia, ou de aperto, de asfixia ou de “confinamento” (hammetsar) (Sl 118,5; cf. Sl 116,3; Lm 1,3)[13], como foram a destruição de Jerusalém (586) ou a perseguição de Antíoco IV Epifânio (167-164) e outras ao longo da história bíblica e hebraica. Pelo olhar atento de Ernst Bloch: «Ainda não é noite o dia inteiro! Ainda há uma manhã para cada noite!».
Vede como caminha aquele homem que chora. Por que chora? Porque carrega aos ombros o saco das sementes que vai semear nos sulcos abertos na terra lavrada. Mas ei-lo que regressa a cantar. Por que canta? Porque carrega aos ombros os feixes de trigo da colheita. É a lição do Sl 126 que, nos seus seis versículos, sabe sobrepor a sementeira e a colheita, as lágrimas e as canções, o exílio e o regresso do exílio[14]. Convergência e sobreposição da desgraça e da consolação!
+ António Couto
[1] Franz-Josef Backhaus, Ivo Meyer, Il libro di Geremia, p. 699.
[2] Como já deixámos dito atrás, as condições políticas favorecem a colocação deste episódio em 601, dado ser o ano em que a Babilónia conheceu um fracasso temporário face ao Egito, levando Joyaquim a pensar que as coisas podiam estar a virar-se outra vez para o Egito.
[3] André Ridouard, Jérémie, l’épreuve de la foi, p. 43.
[4] Frank Crüsemann, Le Pentateuque, une Tora. Prolegomènes à l’interprétation de sa forme finale, in Albert de Pury (ed.), Le Pentateuque en question. Les origines et la composition des cinq premiers livres de la Bible à la lumière des recherches récentes, Genebra, Labor et Fides, 2.ª ed. corrigida, 1991, pp. 358-359.
[5] Paul Beauchamp, Cinquante Portraits Bibliques, p. 192.
[6] Ver o excelente comentário de Jacob Milgrom, Numbers. The Traditional Hebrew Text with the New JPS Translation / Commentary by Jacob Milgrom, Filadélfia – Nova Iorque, The Jewish Publication Society, 1990, p. 144.
[7] Contudo, a versão grega dos LXX lê: «O Senhor destroça as guerras».
[8] Paul Beauchamp, Parler d’Écritures Saintes, Paris, Seuil, 1987, p. 39.
[9] Jack Russell Lundbom, Jeremiah 1-20, p. 236; John Artur Thompson, The book of Jeremiah, p. 153.
[10] André Neher, Geremia, p. 159.
[11] André Neher, L’essence du prophétisme, p. 213.
[12] Paulo Sacchi, Storia del Secondo Tempio. Israele tra VI secolo a.C. e I secolo d.C., Turim, Società Editrice Internazionale, 1994, pp. 8-9; Carmine di Sante, Dio e i suoi volti, pp. 196-197.
[13] São as únicas três ocorrências do termo metsar na Bíblia Hebraica. Erhard S. Gerstenberger, Psalms, Part 2, and Lamentations, «The Forms of the Old Testament Literature» XV, Grand Rapids, Eerdmans, 2001, p. 302.
[14] André Neher, L’esilio della Parola. Dal silenzio biblico al silenzio di Auschwitz, p. 246.
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